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'Nada será igual à perda dos nossos filhos', diz presidente da AVTSM às vésperas do júri

Jaiana Garcia

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Foto: Eduardo Ramos (Especial)/

Flávio Silva, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) desde 2019, esteve afastado da tomada de decisões e entrevistas à imprensa desde o começo do mês, às vésperas do júri esperado há quase nove anos. O coração pediu atenção. Sentia que o corpo estava "concretado". Foi detectada uma isquemia cardiovascular. Metade das artérias estava com 60% de obstrução. Há cerca de 15 dias passou por um cateterismo, e retornou, com a força característica, às atividades da associação. Na última semana, ele e a esposa, Ligiane Righi da Silva, receberam nossa equipe em casa, para uma entrevista exclusiva.

Na porta da casa, flores e adesivos que remetem à tragédia que levou a filha, Andrielle Righi da Silva, 22 anos. Um deles diz "o Coração do Rio Grande precisa de Justiça". E foi em busca desta justiça que Flávio nunca parou, mesmo quando o corpo cansou. Na sala, um banner com a foto de Andri, como é chamada pelos pais, e diversas fotos espalhadas pelos móveis.

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Os dois vestiam uma camiseta com a frase "se a recordação de uma tragédia é dolorosa, imagina carregá-la dentro de si". Carregar a dor tem sido o combustível para seguir lutando por justiça e honrando a memória da filha. Os dois também são pais de Gabrielle. 

Durante a conversa, que durou mais de uma hora, eles falaram sobre as memórias que guardam de Andrielle, sobre as expectativas para o júri, o cuidado com a saúde mental e o quanto a tragédia modificou a vida da família.

Diário - O senhor passou por problemas de saúde recentemente. O médico liberou que o senhor compareça ao júri?

Flávio - Eu vou de qualquer jeito, nem que seja fugido. É aquela história "se tu fores, tu podes morrer. Se tu não fores, podes morrer também", então eu vou. Eu fico preocupada com elas (esposa e filha). Vão ter muitas reações. Vão nos mostrar muitas coisas que vão ser chocantes, mas é um mal necessário. Nada será igual à perda dos nossos filhos.

Diário - O que mudou na família de vocês nestes quase nove anos?

Ligiane - Mudou tudo completamente. Imagina, num sábado, a filha mais velha sai para comemorar o aniversário e domingo, somos nós três em casa. Aquela vida que a gente tinha, nunca mais. Quando que eu poderia imaginar que eu estaria na rua pedindo Justiça? Nunca! Nós não somos mais os mesmos. São altos e baixos. É torturante demais o fim de ano, o mês de janeiro, que antes era motivo de festa, já que a Andri e a Gabi fazem aniversário em janeiro.

Flávio - Passou nove anos, mas o corpo parece que andou e a alma ficou parada. Eu olho muitas fotos antigas, minha, do Sérgio (da Silva, que foi presidente da AVTSM antes de Flávio), com cabelo escuro e cheio. Minha mãe tomava muito remédio e eu sempre fui contra tomar medicação. Agora, chega de noite, são oito, nove comprimidos. De manhã, mais um pouco. A Kiss não terminou com aqueles 242 mortos, ela continua matando. Vários pais perderam a vida. Acompanhamos muitas pessoas que perderam a vontade de viver. Isso reflete na gente. Quando o Sérgio enfartou, ali, ligamos um alerta.

Diário - Recentemente, a defesa de um dos réus solicitou que ex-prefeito Cezar Schirmer e o promotor Ricardo Lozza fossem ouvidos no julgamento. Como vocês receberam essa informação?

Flávio - Isso é mais uma jogada de marketing. Todo mundo fala do envolvimento de A, B ou C, mas a gente tem se concentrado nos quatro réus. O depoimento deles não vai ser analisado para que sejam responsabilizados. Estamos focados nos réus. Não faz diferença nenhuma eles deporem ou não. A defesa está demonstrando desespero e insegurança por não ter meios para poder desqualificar o crime ou absolver o cliente dele. O objetivo é tumultuar o processo, convencer a opinião pública de que o cliente dele é uma vítima e não réu. Eles querem confundir os jurados. O advogado sempre falou que o cliente dele não queria matar ninguém. Minha filha saiu para comemorar o aniversário. Ela não disse que queria sair de casa para morrer.

Diário - O fim do julgamento vai trazer, de algum modo, conforto a alguns familiares?

Ligiane - Se for justo, sim, mas se não for justo vai só piorar. E os pais? E os irmãos? E o buraco que ficou? E o vazio naquela família? E os sonhos e planos daqueles jovens? Eles têm responsabilidade! Então, que cada um pague pela sua responsabilidade. Não é vingança. Eles não sabem lidar com o tamanho do amor que temos pelos nossos filhos.

Flávio - Muitas famílias se dissolveram. Muitas famílias se separaram porque os pais não conseguiram lidar com isso tudo. Nós temos outra filha, e houve uma preocupação de que ela se sentisse esquecida e abandonada. Mas ela pensava o mesmo que nós, e disse que estranharia se não fizéssemos nada, acomodados. Se tivesse sido o contrário, com certeza a Andrielle faria o mesmo.

Diário - Como vocês estão se preparando para o júri? Têm acompanhamento psicológico?

Ligiane - Nós três temos. Eu comecei em 2016, quando a luz vermelha acendeu. Queria ir para o chão devagar. A gente recebe muita informação. Além de não ter mais a nossa filha, lidar com o julgamento das pessoas é muito difícil. Ficar atrás de um computador escrevendo barbaridades é fácil, mas ninguém se coloca no nosso lugar. Não precisa perder um filho para respeitar o que sentimos. Ninguém faz ideia do que passamos. Cada um sente diferente, mas não deixa de doer. Dói todos os dias. Não tem um dia que eu não lembre ela. Já recebi críticas de pessoas que dizem que não vem na minha casa porque tem fotos dela espalhadas. Sempre vai ter fotos dela aqui.

Flávio - Eu fui uma das pessoas que mais resistiu ao atendimento psicológico. Na gestão do Sérgio, tivemos muitas conquistas, e uma delas foi a de conseguir medicamento para os familiares e sobreviventes. O Estado foi relaxando na entrega e nós conseguimos. Se não fosse isso, muitos não teriam condições financeiras de manter seus tratamentos. Eu recebia ligações de mães desesperadas. Enquanto estamos correndo, lutando, não sentimos, mas quando paramos e olhamos para dentro, percebemos que estão recuperados. Hoje mesmo, fui ao centro, passei na tenda da vigília para pegar um pouco de energia. Sinto-me à vontade lá, peço que emanem boas energias para a gente. Precisava ir, e me senti muito melhor.

Diário - Vocês dois sempre passaram uma imagem de serem muitos fortes. Os incansáveis cansaram?

Flávio - Há umas semanas eu perdi até a voz. Andava muito cansado e achei que ia me atacar da garganta. Fui notando que a cada dia o som da minha voz ia sendo abafado. Numa noite, antes de consultar com o psiquiatra, sentia que parecia que tinha sido "concretado" e esmagava tudo, até os ossos. Expliquei o que estava sentindo e o médico já conseguiu uma consulta imediatamente com o cardiologista. Fiz um eletrocardiograma e foi detectada uma espécie de uma isquemia cardiovascular. Eu deveria passar por um cateterismo. Ele me deu um medicamento e ficamos esperando. Fiquei em dúvida se deveria fazer porque seria nas vésperas do júri e tinha medo que o resultado não fosse bom. Mas a esposa começou a pressionar e eu fui.

Ligiane - Foi aí que a Gabi assumiu e disse "o pai precisa se acalmar, não vai mais dar entrevista". Eu tentei argumentar que ele era o presidente da associação e precisava falar, então ela disse "antes de ser presidente, ele é meu pai". Foi aí que ele parou porque a filha dele estava pedindo. Precisamos pensar na gente também. Faz nove anos, mas para a gente não passou. A sensação é a mesma. Eu me lembro de tudo, está tudo marcado. Nunca vou esquecer.

Diário - Quais são as recordações materiais que vocês guardaram da Andrielle em casa?

Ligiane - Depois de um tempo, colocamos tudo dela em cima da cama e separamos o que a Gabi queria para ela e o restante, doamos. Ficaram a cama e os ursinhos que ela gostava. O essencial está aqui (coloca a mão no coração, emocionada). Quando a gente arrumou as coisas dela, eu coloquei as miudezas dentro de uma caixa. Eu guardei o vestido de um aninho delas, os dois, coincidentemente, de marinheira. Entreguei para a Gabi e disse "esse é teu tesouro". São 22 anos em uma caixa. Eu desejo que nenhum pai e mãe passe pelo que estamos passando.

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